sábado, 15 de fevereiro de 2020

Prece para que estes textos não a atinjam

Como estes textos são confusos, e mostram a perturbação de um filho com as unhas sujas de areia, cavando com as próprias garras a terra das lembranças, a fim de encontrar na própria alma o lugar para enterrar sua mãe. 

Já que no meio da escavação, desvairada, não só a terra, mas pedregulhos e mesmo torrões vão sendo arremessados sem aviso para os transeuntes.

E sangram as mãos, e baba a boca, face toda suja, olhos arregalados para enxergar melhor em meio a escuridão. 

Óbvio que não há mãe que quisesse ver o filho nesse estado. 

É assim que peço, neste texto de descanso, quando a respiração se aquieta e suspira, que os anjos defendam mamãe de ler a maior parte destas linhas. Basta que ela saiba a síntese e divise a mensagem por trás das palavras de dor: é que muito a amei.  

Ainda não

Essas páginas podem ser um erro. Não sei se já elaborei o luto ou se ele ainda escarafuncha meu peito. Os dias vem passando como se nada tivesse acontecido. Uma sensação distante de que ela continua lá em seu sofá, face de cera, assistindo às missas na televisão. 

Pronto, eis a resposta. Não elaborei o luto. Ela ainda nem morreu para mim. Não bastaram aqueles quatro dias confusos no hospital. Nem o enterro, nem os familiares unidos, nem o cortejo, nem ver seu corpo no caixão entrando no jazigo ao lado de papai. Em cada momento desses, pareço ainda estar ali. Fragmentos de alma paralisados no tempo. 

No hospital, estávamos no último quarto do segundo andar, a direita. Logo ao lado havia uma janela. Um vidro enorme com um parapeito simples de metal. Dava para ficar sentado com a cabeça colada ao vidro. Pela madrugada, olhava alguns raros transeuntes passarem. Ficava investigando na mente deles qual o sofrimento que lhes apunhalava ou apenas contemplava a vida que seguia. Olhava de volta para o quarto onde o corpo de mamãe se extinguia. Quando seria?

Os dias que se seguem depois que ela se foi são cheios de tarefas. Ajudo a esposa a cuidar das crianças com muito préstimo. Acordo cedo e acordo a casa. Faço o café. Deixo as crianças. Vou trabalhar. Às vezes, pego as crianças. Vamos almoçar. Durmo no sofá. Gosto dos meninos sentados sobre mim assistindo a desenhos. Uma hora em ponto desligo a televisão. O menor vai dormir. O maior vai brincar. Dia sim, dia não tem as terapias do mais velho. Nos outros dias é a natação dos dois. No meio da semana, tenho um plantão noturno. A sexta é a única que me sobra para algum momento vago, mas que cuido logo em ocupar. A foto dela ao lado de vovó está bem ali no topo do móvel da sala, ao lado de estatuetas sagradas. Ela está de cabelo curto e ondulado. Achei-a linda quando chegou com esse cabelo em casa. Isso foi há tanto tempo. Vovó estava viva e mamãe ainda tinha certa vaidade. 

O jazigo em que o corpo de mamãe ficou é o vinte seis. Meu primogênito adora números. Gravou bem aquele. Sem dor, desespero ou saudade. Não sei como funcionou mamãe em seu coração. Terá ela sido a mera figurinha da árvore genealógica que fica logo acima de mim? Terá preenchido alguma coisa do arquétipo de avó no coração da criança? Ou foi a imagem do sofrimento e da morte que feriu Sidarta ao ponto de querer ardentemente a iluminação? O tempo dirá, quando João conseguir falar mais dos segredos de sua alma.

Entrava de vez em quando na enfermaria dela. Era a mesma coisa, a mesma freqüência respiratória, a mesma respiração curta, o mesmo soluço espaçado que queria corrigir em vão a acidose respiratória. O gás carbônico ia se aglomerando no sangue potencializando as escórias metabólicas não mais filtradas pelo rim. Dava pra fazer um filme só das lutas que iam acontecendo dentro do corpo dela. Batalhas perdidas uma a uma, até o momento de invadirem o castelo e arrancarem a rainha do trono, decapitando-a, o espírito jorrado para o espaço, o corpo derramado na cama do hospital. Eu cogitava quem daria o golpe final. Seria aquela bolha que descia no equipo provocando uma embolia gasosa? Teria aquela bolha mais compaixão do que a acidose, assassina lenta, que dissecava célula a célula, cortando fio a fio a potência da vida?

- A mão ainda está quente, mas os pés estão roxos. Ela esquecera de fazer as unhas. Não, não esquecera. Era complicado demais fazer com todos os tremores. Chega! preciso dormir.