terça-feira, 10 de março de 2020

Mamãe me bateu só até os oito anos

Ontem ouvi uma senhora falando sobre os castigos corporais que recebia de sua mãe. Lembrei dos meus, mas quase não lembrei. Não eram severos e acredito que fossem raros. Eram tapas aqui e acolá. Nem sei em que locais do corpo. Realmente isso não ficou na memória. E não acredito que seja recalque. Apenas não importaram. 

Também tenho em mente uma idade mais ou menos em torno dos oito anos, talvez dez, quando mamãe desistiu de me bater porque eu era mais ágil do que suas investidas. Por, na minha cabeça, eu ser um menino comportado, olhando para trás, fico realmente querendo entender o que eu fazia para merecer palmadas. 

Avaliando a relação com meus filhos hoje, sinto uma vontade de reproduzir os castigos. Rarissimamente chegam a ser com violência física. Na maioria das vezes são impedimentos de brincar ou momentos para ficarem isolados no sofá pensando no que fizeram de ruim. Sinto que pouco adianta qualquer coisa. Às vezes que escapa um puxão ou uma pegada mais forte, gerando dor, são extremos. E os momentos em que resvalou um cascudo, foram mais extremos ainda, escapulidos do meu cansaço. 

Não posso culpar só o cansaço. Há violência em mim. E em uma proporção que não gosto de enxergar. Raramente a deixo se manifestar. Mas, minha homeopata disse que parte da minha prescrição seria fazer uma arte marcial que permitisse o extravasamento de tudo que engulo sem esmurrar. Ela me aconselhou boxe. Nada de coisas leves. 

A forma que tenho de cuidar de meus filhos lembra muito mais  mamãe do que papai. Recordo deste muito tempo trabalhando e, quando em casa, lendo. Não tinha arroubos de carinho, embora fosse nosso escudo protetor e advogado contra a raiva de mamãe. Apenas uma vez em toda a vida papai me surrou, mas isso é outra história. 

Papai era a defesa, a inteligência, o médico, o motorista, a barriga em que me encostava para assistir alguns programas de domingo. Era uma presença certa de quinta a domingo, pois toda a minha infância foi papai trabalhando no interior. Mamãe era todo o resto das horas e dos dias. Café, almoço e jantar. Colocar para dormir e acolher o despertar. Levar ao colégio e pegar. Comprar quitutes e passear. Regrar o cotidiano. Permitir e proibir. Cobrar e recompensar. Ouvir os reclames da professora da escola, assinar a agenda, vigiar a resolução dos deveres de casa. Dar banho e arrumar. Dar os remédios na hora certa e se desesperar com a persistência da febre. Beijar, abraçar e, quando extrapolávamos sua paciência, dar carão e, então, bater. Veja que bater é um nada. E esse texto não quer aconselhar as mães a baterem em seus filhos. Apenas diz que bater, para mim, foi um nada. 

Eu beijava mamãe demais, e nunca beijei papai depois que adolesci. Beijei mamãe até quando o seu corpo estava gélido e imóvel no caixão. 

Na astrologia, o sol e a lua formam uma antítese muito importante na formação da personalidade. Aquele é a reluzente razão, que nos dá o sentido do que somos em essência. E a lua é a confusão das emoções, o fio descascado da sensibilidade, a rainha esquiva dos sentimentos. 

É exatamente assim que vivo o luto dos dois. A morte de papai foi nobre, correta, sem arestas, sem pontas. Toda vez que lembro dela não tem como não dizer: "foi isso". A morte de mamãe foi estranha, desesperadora, triste. E mesmo quando rememoro, passando cada variável a limpo, buscando a adequação matemática dos eventos, não me consolo por completo. Uma melancolia argêntea fere o peito. Foi pior do que qualquer surra.

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