domingo, 15 de março de 2020

A cadeira de rodas

A cadeira de rodas foi doada. Dizia que estava sem tempo para ir deixá-la na pessoa para quem eu tinha doado e, então, meu sogro fez a gentileza de dizer que estava disponível para deixar. Aquiesci. 

Ela estava ali parada naquele canto há quase quatro meses. De vez em quando passava por ela e me vinha a mente se a procrastinação não era uma parte do luto. "Besteira, é só porque estou sem tempo". A mulher morava bem perto. Em sete minutos se chegava lá de carro. Fui várias vezes pegar minha esposa em um shoppinzinho perto. Nunca me atentei de levar a bendita. 

Viajei. Deixei meu sogro com a incumbência. Quando voltei, a cadeira ainda estava lá. Deu-me certo alívio. Ela não se foi. Ele deve ter se esquecido. Fui ao plantão. Sábado a noite. O plantão fora agitado. Cheguei em casa, tomei banho e desci para o café-da-manhã acompanhado da esposa.

- O Carlos foi deixar a cadeira da sua mãe. 
- Sério! Meu Deus! Deixa eu ver. Nem me despedi. 

Falei brincando. Pelo menos pensei ter falado brincando. Levantei num salto. Fui até à porta. Olhei para o canto em que a cadeira ficava e dei tchau. Minha esposa percebeu que não era brincadeira. Era o meu jeito de falar sobre uma melancolia profunda sem dar na cara. Quando voltei, ela me desnudou:

- Amor, você parece que não está sofrendo, e quando menos se espera, as coisa mais miúdas importam. - falava enquanto massageava minha mão. 

Algumas lágrimas quiseram cair. Permiti uma ou duas. Não era bom falar nada, senão despencava. 

Ainda lembro o dia que saí para comprar aquela cadeira com mamãe. Nem imaginava que ela estava precisando tanto assim. Achava mais uma medida de precaução. Na verdade, nunca achei que mamãe estava precisando tanto de ajuda quanto ela alarmava. Talvez porque ao mesmo tempo a via forte em contraste com os desesperos que muitas vezes achava desmedidos. Nunca entendi aquela angústia de morte se não levantasse o braço dela. Não encontrava aquele sintoma em nenhum lugar da literatura médica. 

No começo da doença, mesmo ela sendo uma deficiente por tudo que acontecia nas entranhas do seu cérebro, nos tais núcleos da base, a devastação silenciosa, demorei para pedir liberação para vaga de deficiente. Na verdade, dei entrada e nunca fui pegar. Imaginava que podia dar conta de estacionar perto e levá-la, ainda que com esforço. Julgava que outros precisavam mais. 

Os trabalhos também consumiam os dias. Tem também algo a ver com a decisão que havia tomado em não me deixar enterrar com ela. Coisa que estava acontecendo nos primeiros quatro anos de seu Parkinson, pela promessa que fiz no túmulo de papai. Mas, essa promessa e a libertação dela é outra história. O fato é que desde que saí da casa da mãe em definitivo, os cuidados que lhe dispensava buscavam manter uma distância parcimoniosa. Uma distância que me permitiu ser homem, e não apenas seu filho. Uma distância, todavia, que sempre machucou meu peito, divido que estava entre uma vontade dolorida de lhe servir nos mínimos detalhes e uma necessidade urgente de seguir meu caminho. Nessa dividida fiquei por dez anos. 

Nos últimos meses, a cadeira mostrou-se de uma necessidade ímpar. Para transportá-la a qualquer lugar, mesmo dentro de casa, tinha que ser nas rodas. Lúcida, sempre lúcida, o corpo cada vez menos lhe obedecia. Ela sempre mandara em todos. Sobre ela ser o comandante supremo, também é outra reflexão. Agora é só dizer que a comandante foi, pouco a pouco, perdendo a tropa: vovó, que era sua superior, depois perdeu papai, quase perdeu minha tia, que sobreviveu a uma trombose, mas perdera a fala, e então, me perdeu,  pelo menos como seu subalterno imediato. E enquanto isso, ia perdendo o controle da torre de comando, os núcleos da base. 

A última cadeira de comando se foi. O grande quartel, e agora, a cadeira.

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