domingo, 8 de março de 2020

Comecei uma terapia

Comecei uma terapia para tentar entender o que houve entre nós. Dia desses me lembrei o quanto te amei. Nunca conseguia ficar muito tempo com raiva. Tentava me comportar para merecer seus beijos. Era o conhecido bom menino. 

Dei muito orgulho em vários momentos. Prêmios que a senhora me entregou na mão. Tirei do seu rosto sorrisos. Beijei-lhe até mais não poder. E houve um tempo que realmente parecia não poder. 

Sua doença avançando, parecia que só tinha energia para ela. Seu rosto melado por um óleo, seu corpo enrijecido. Não mais sabia como cuidar de você. Eram três, e as vezes quatro, cuidadores se revezando para dar conta. Eu já não dava. E não dava por um motivo primeiro e o mais importante: eu não queria dar conta. 

A partir de um tempo eu queria ser apenas o seu filho e não mais um cuidador. Não mais alguém que estava ali para tentar sanar uma dor insanável ou para suprir as compras de casa. A terapeuta me orientou a recobrar o papel de filho que a morte de papai e a sua doença haviam me usurpado. Eu não era o seu homem nem o seu empregado, era o seu filho. Esse papel pedia então colo e atenção. Alguém poderia dizer que isso era mimo. Nem sei mais o que era aquilo. Aquela doença fazia os papéis todos se confundirem. Algum dia eu iria enterrá-la. Essa ordem dos fatos, possivelmente, não mudaria. Mas os papéis de mãe, filho, pai, cuidador, estava tudo uma bagunça. 

Em algum lugar da outra dimensão ainda sonho com você rígida. Minha nova terapeuta pediu para que eu não pensasse mais no que aconteceu naquela nossa existência de sofrimento e limitação. Que deixasse para reaver o diálogo quando te reencontrar. Não é fácil assim. Não é que eu precise resolver isso com você. É que preciso resolver aquilo que foi você em mim. A figura de afeto e companheirismo da primeira infância degenerada na prisioneira de uma vida miserável. Uma parte de mim queria cuidar de você até o último segundo, sem perder uma noite. Se assim tivesse sido, eu teria deixado de ser esposo, pai, médico. A outra parte, a que preponderou, tinha que desistir de você em larga medida. Deixar que outros tomassem de conta das suas necessidades. 

Ao final, eu era o pagador de contas, administrador de banco, e o supridor esporádico de mantimentos de supermercado. Esse afastamento me doeu. Tanto mais quanto menos se concretizou o retorno. Pensava que teria de novo a minha vez de abnegação filial. Deus parece que não quis esse desfecho: deixar você definhando em um leito só para devolver minha santidade. Preferível foi libertar-te das dores e esfregar a minha pequenez na cara. Eu, que passei a vida acreditando que nossa premiação celeste viria segundo as nossas obras, começo a depender, para minha sanidade, da misericórdia divina, da graça. Uma salvação que dependente só da Vontade Dele. E isso vem mexendo com muita coisa aqui dentro. 

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