domingo, 8 de março de 2020

Rasgar o braço

Quando eu estava preso naquela vida de levantar o braço para diminuir a angústia dela, muitas vezes aguentava com bravura, resistência estoica. Então, na medida que vastos minutos iam se passando, os meus recursos de resiliência iam se esgotando. 

Naquele dia, o sofrimento durara pouco, no outro um pouco mais, já no outro durara para além do suportável. Nesses dias, então, com noites acumuladas, com preces sem respostas, com passes magnéticos inefetivos, o meu corpo pedia repouso, mas o meu descanso significava a angústia dela. Parava e me levantava. A raiva contra a doença dela me subia à cabeça. 

- Isso não está certo. Vamos tomar mais uma dose. 
- Não. Eu passo mal. 
- Isso não pode ser. 
- Levante meu braço. 
- Não aguento mais. 

Ela tremia calada. Seu rosto ia enrugando de aflição. Era o mesmo rosto que amei por toda a vida, sem querer que qualquer mal lhe acontecesse. Ainda mais depois da morte de papai. Quando cheguei do enterro do velho, de vez em quando, tomado de precauções quanto a finitude da vida, ia até mamãe dormindo para saber se ela respirava. Assumi seus cuidados sem divisar o que enfrentaria. Os piores monstros: o esgotamento do cérebro e a dúvida da alma. 

- Tem que ter algo que se possa fazer. 

Levantava seu braço agora o esticando. Alongava e massageava cada músculo, do ombro ao dedo. Os tremores não passavam. O remédio não fazia efeito. Mamãe começava a ficar com medo das minhas ações, porque perdia o jeito, perdia o tato, perdia o cuidado, passava para atitudes mecânicas, na busca de soluções mais práticas, mais assertivas. 

Você que está lendo não deve estar entendendo o que acontecia. Não se preocupe, nem os médicos sabiam. Ela tinha uma doença neurológica que a fazia perder o controle dos movimentos. Tem pessoas que tremem, ela enrijecia. Todavia, o enrijecimento era seguido de uma angústia de morte que a fazia implorar para que movimentassem o braço dela. Era como se ela não quisesse ficar presa naquela doença, e a alma dela implorasse libertação. Nessa época era apenas no braço esquerdo. E estou descrevendo uma dessas noites em que estávamos ali, três da madrugada, tentando sanar aquela rigidez. 

- Por favor, alongue meu braço. 
- Estou alongando. 

Mudava de posição. 

-  Assim não. 

Subia, então, no sofá para alongar por trás. 

- Não, assim não. 

Colocava-a de pé para a movimentar olhando-a frente a frente. 

- Não, não, não. 
- O que, então?!

Parava por completo, devolvia-a para o sofá. Afastava-me alguns metros. Olhava para aquele braço. Na minha mente aparecia a imagem de eu arrancando seu braço, com as próprias mãos, com as unhas, seus músculos inteiros, e depois os ossos. Depois, em vez de algum homem bom dentro de mim dizer que isso não se faz, outro monstro apenas replicava: não daria certo. Porque, então, todo o corpo dela paralisaria. Não era esse o caminho. 

Acho que ela percebia minha face de psicopata, ou perdida, e ficava bem quietinha. Quando tentava me aproximar, dizia:

- Deixe, não precisa mais. 

Ela ia suportando a rigidez calada, contida, rezando de algum modo. E eu olhando com vergonha, com impotência, com pecado. 

Ali vinha o clareamento dessa longa noite. O dia chegava contornando as nuvens cinzas. O remédio fizera efeito enfim. Na rua, uns notívagos indo tomar seus caldos. Alguns trabalhadores da primeira hora descendo de seus ônibus. 

- O que tenho para fazer hoje? Nem sei. O que tenho para fazer hoje? Nem sei. 

Dou um beijo no rosto dela e saio em silêncio.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário