quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Fechar a conta

Três irmãos esperam os protocolos finais. A burocrata do banco confere cuidadosamente os últimos papéis daquela conta. Logo após a assinatura, seria fechada, para sempre. Não haveria ninguém que pudesse reabri-la. Só se mamãe se levantasse do túmulo e fosse lá fazer um escândalo.

- Pensavam que eu estava morta?! Não vão se livrar de mim tão fácil!

- Não mãe, eu não quero nunca me livrar da senhora. - gritaria histérica a irmã. O irmão mais velho começaria a chorar, aquele homem grande e gordo, morrendo de vontade de dar uma abraço na ex-finada, sem saber como dar. Ele nunca foi de demonstrar sentimentos. Acho que eu ficaria olhando apenas aquela farsa. Mortos não voltam à vida. Apenas seus Espíritos são perturbados em mesas mediúnicas e terreiros. Mas, essa cena que agora descrevo, pensaria lá naquele momento, era impossível. Interessante é que mamãe voltara gritando, o que seria o caso de ela ter se curado. Nada que uma boa morte para lhe devolver a saúde. 

Nada disso aconteceu. Claro que não. Tive que levar meu filho, estávamos sem babá. A alegria do garoto imaginando aventuras naquele espaço inerte me distraiu. Sem ele, teria pensado mais no quanto aquele era mais um último momento.

Minha irmã não tinha tomado café-da-manhã, quando a arranquei de casa com receio da hora. Tive que aguentar seu humor insuportável. Ainda demoramos aguardando o mais velho que estava terminando uma viagem com uma cliente. Agilizamos nossas assinaturas e as primeiras transferências. A divisão não teve como ficar igual em três partes. Diferia um centavo a menos em uma das parcelas. Eu que já havia arcado com muitas despesas, tomei mais essa pra mim. Tudo transcorreu sem litígio, não seria agora. 

Finda as transações, meu irmão fala algo do que vai fazer com a herança. Minha irmã, querendo dar algum conselho de vida para o mais velho que a ultrapassa em mais de dez anos de nascimento, vai se prestando ao ridículo desse intento. Ele aquiesce sem alarde. Fala até que já ouvira conselhos de um amigo advogado. 

O meu filho me circunda como se eu fosse um sol ou um pau de fita. Pede colo, pede para ir para casa. 

- Pronto, filho. Terminamos. 

Nos despedimos. Ainda quis dar um abraço no irmão. Valeu o tampinha nas costas. Há tempos não sou de afetos com ele. Há muito custo dei uma palavra amiga no enterro de mamãe ano passado, e no de vovó há dezoito anos. Nunca me senti no papel de ensiná-lo algo sobre a vida e as perdas. No dia que tentei, ainda na adolescência, brigamos feio. Decidi que nunca mais tentaria. 

Cada um foi pro seu lado. E eu fiquei pensando que mamãe, ainda não a enterrei. 




domingo, 31 de maio de 2020

Eu pensava que sairia por aí

Quando você morresse, pensava que sairia por aí vagando. Imaginei ficar perdido no cemitério por horas, sem saber bem o que fazer. De repente, um espaço na vida havia surgido, aquele que você ocupava. Precisaria de tempo para assimilar esse novo todo. Era um espaço enorme. 

Via-me por horas perdido em frente ao seu túmulo. A chuva descendo, escondendo as lágrimas. Eu, calado. A família compreendendo o choque que eu sofrera. Isso, depois de anos de luta, com algo mais desgastante nos anos finais. 

Não foi nada assim. 

Pegou-nos de surpresa sua morte. Poupou-nos de todos esses preditos anos de sofrimento. Desgastei-me por míseros quatro dias no hospital em que sua alma se despedia. Esperava cerca de quinze anos, me vieram quatro dias. Apenas esse tempo para tentar justificar minhas ausências no seu cuidado. 

- É que meus filhos me queriam, mãe. Minha esposa precisava de mim. Meu trabalho urgia. 

Cada dia que voltava em sua casa, menos você estava lá - a doença cada vez mais presente - e menos havia o que eu pudesse fazer. 

Houve misericórdia de Deus. Finalmente, sinto o que é estar em dívida com a Graça. Nenhuma obra que eu faça cobrirá os anos de sofrimento que Ele poupou a nós. 

Logo após sua morte, viajei com a mulher e as crianças. A viagem foi ótima, mas nem parecia que você não estava mais por aqui. Parecia apenas uma semana qualquer que eu demorava para ligar. Às vezes minha irmã me ligava do celular da senhora e eu estranhava. "Mamãe, me ligando agora?!" Estranhava pelo horário e por ligar de tão longe. Apenas depois é que me apercebia. "Ah! Não pode ser ela. Não mais." 

Quando voltamos, uma pandemia estourou no mundo. As pessoas foram cada vez mais desaconselhadas a sair de casa. Estamos presos, cada um em seu local, já vão três meses. Essa crise me trouxe um pouco de consolo por você não estar aqui vivenciando ela. Sua morte seria mais triste e mais solitária. Foi e não foi olho para seu santinho e me vem um aperto no peito, logo passa. São os meninos, a esposa, o trabalho. 

Eu pensava que sairia por aí com tanto espaço que você deixou, mas a vida diminuiu sem você. 

domingo, 15 de março de 2020

A cadeira de rodas

A cadeira de rodas foi doada. Dizia que estava sem tempo para ir deixá-la na pessoa para quem eu tinha doado e, então, meu sogro fez a gentileza de dizer que estava disponível para deixar. Aquiesci. 

Ela estava ali parada naquele canto há quase quatro meses. De vez em quando passava por ela e me vinha a mente se a procrastinação não era uma parte do luto. "Besteira, é só porque estou sem tempo". A mulher morava bem perto. Em sete minutos se chegava lá de carro. Fui várias vezes pegar minha esposa em um shoppinzinho perto. Nunca me atentei de levar a bendita. 

Viajei. Deixei meu sogro com a incumbência. Quando voltei, a cadeira ainda estava lá. Deu-me certo alívio. Ela não se foi. Ele deve ter se esquecido. Fui ao plantão. Sábado a noite. O plantão fora agitado. Cheguei em casa, tomei banho e desci para o café-da-manhã acompanhado da esposa.

- O Carlos foi deixar a cadeira da sua mãe. 
- Sério! Meu Deus! Deixa eu ver. Nem me despedi. 

Falei brincando. Pelo menos pensei ter falado brincando. Levantei num salto. Fui até à porta. Olhei para o canto em que a cadeira ficava e dei tchau. Minha esposa percebeu que não era brincadeira. Era o meu jeito de falar sobre uma melancolia profunda sem dar na cara. Quando voltei, ela me desnudou:

- Amor, você parece que não está sofrendo, e quando menos se espera, as coisa mais miúdas importam. - falava enquanto massageava minha mão. 

Algumas lágrimas quiseram cair. Permiti uma ou duas. Não era bom falar nada, senão despencava. 

Ainda lembro o dia que saí para comprar aquela cadeira com mamãe. Nem imaginava que ela estava precisando tanto assim. Achava mais uma medida de precaução. Na verdade, nunca achei que mamãe estava precisando tanto de ajuda quanto ela alarmava. Talvez porque ao mesmo tempo a via forte em contraste com os desesperos que muitas vezes achava desmedidos. Nunca entendi aquela angústia de morte se não levantasse o braço dela. Não encontrava aquele sintoma em nenhum lugar da literatura médica. 

No começo da doença, mesmo ela sendo uma deficiente por tudo que acontecia nas entranhas do seu cérebro, nos tais núcleos da base, a devastação silenciosa, demorei para pedir liberação para vaga de deficiente. Na verdade, dei entrada e nunca fui pegar. Imaginava que podia dar conta de estacionar perto e levá-la, ainda que com esforço. Julgava que outros precisavam mais. 

Os trabalhos também consumiam os dias. Tem também algo a ver com a decisão que havia tomado em não me deixar enterrar com ela. Coisa que estava acontecendo nos primeiros quatro anos de seu Parkinson, pela promessa que fiz no túmulo de papai. Mas, essa promessa e a libertação dela é outra história. O fato é que desde que saí da casa da mãe em definitivo, os cuidados que lhe dispensava buscavam manter uma distância parcimoniosa. Uma distância que me permitiu ser homem, e não apenas seu filho. Uma distância, todavia, que sempre machucou meu peito, divido que estava entre uma vontade dolorida de lhe servir nos mínimos detalhes e uma necessidade urgente de seguir meu caminho. Nessa dividida fiquei por dez anos. 

Nos últimos meses, a cadeira mostrou-se de uma necessidade ímpar. Para transportá-la a qualquer lugar, mesmo dentro de casa, tinha que ser nas rodas. Lúcida, sempre lúcida, o corpo cada vez menos lhe obedecia. Ela sempre mandara em todos. Sobre ela ser o comandante supremo, também é outra reflexão. Agora é só dizer que a comandante foi, pouco a pouco, perdendo a tropa: vovó, que era sua superior, depois perdeu papai, quase perdeu minha tia, que sobreviveu a uma trombose, mas perdera a fala, e então, me perdeu,  pelo menos como seu subalterno imediato. E enquanto isso, ia perdendo o controle da torre de comando, os núcleos da base. 

A última cadeira de comando se foi. O grande quartel, e agora, a cadeira.

terça-feira, 10 de março de 2020

Mamãe me bateu só até os oito anos

Ontem ouvi uma senhora falando sobre os castigos corporais que recebia de sua mãe. Lembrei dos meus, mas quase não lembrei. Não eram severos e acredito que fossem raros. Eram tapas aqui e acolá. Nem sei em que locais do corpo. Realmente isso não ficou na memória. E não acredito que seja recalque. Apenas não importaram. 

Também tenho em mente uma idade mais ou menos em torno dos oito anos, talvez dez, quando mamãe desistiu de me bater porque eu era mais ágil do que suas investidas. Por, na minha cabeça, eu ser um menino comportado, olhando para trás, fico realmente querendo entender o que eu fazia para merecer palmadas. 

Avaliando a relação com meus filhos hoje, sinto uma vontade de reproduzir os castigos. Rarissimamente chegam a ser com violência física. Na maioria das vezes são impedimentos de brincar ou momentos para ficarem isolados no sofá pensando no que fizeram de ruim. Sinto que pouco adianta qualquer coisa. Às vezes que escapa um puxão ou uma pegada mais forte, gerando dor, são extremos. E os momentos em que resvalou um cascudo, foram mais extremos ainda, escapulidos do meu cansaço. 

Não posso culpar só o cansaço. Há violência em mim. E em uma proporção que não gosto de enxergar. Raramente a deixo se manifestar. Mas, minha homeopata disse que parte da minha prescrição seria fazer uma arte marcial que permitisse o extravasamento de tudo que engulo sem esmurrar. Ela me aconselhou boxe. Nada de coisas leves. 

A forma que tenho de cuidar de meus filhos lembra muito mais  mamãe do que papai. Recordo deste muito tempo trabalhando e, quando em casa, lendo. Não tinha arroubos de carinho, embora fosse nosso escudo protetor e advogado contra a raiva de mamãe. Apenas uma vez em toda a vida papai me surrou, mas isso é outra história. 

Papai era a defesa, a inteligência, o médico, o motorista, a barriga em que me encostava para assistir alguns programas de domingo. Era uma presença certa de quinta a domingo, pois toda a minha infância foi papai trabalhando no interior. Mamãe era todo o resto das horas e dos dias. Café, almoço e jantar. Colocar para dormir e acolher o despertar. Levar ao colégio e pegar. Comprar quitutes e passear. Regrar o cotidiano. Permitir e proibir. Cobrar e recompensar. Ouvir os reclames da professora da escola, assinar a agenda, vigiar a resolução dos deveres de casa. Dar banho e arrumar. Dar os remédios na hora certa e se desesperar com a persistência da febre. Beijar, abraçar e, quando extrapolávamos sua paciência, dar carão e, então, bater. Veja que bater é um nada. E esse texto não quer aconselhar as mães a baterem em seus filhos. Apenas diz que bater, para mim, foi um nada. 

Eu beijava mamãe demais, e nunca beijei papai depois que adolesci. Beijei mamãe até quando o seu corpo estava gélido e imóvel no caixão. 

Na astrologia, o sol e a lua formam uma antítese muito importante na formação da personalidade. Aquele é a reluzente razão, que nos dá o sentido do que somos em essência. E a lua é a confusão das emoções, o fio descascado da sensibilidade, a rainha esquiva dos sentimentos. 

É exatamente assim que vivo o luto dos dois. A morte de papai foi nobre, correta, sem arestas, sem pontas. Toda vez que lembro dela não tem como não dizer: "foi isso". A morte de mamãe foi estranha, desesperadora, triste. E mesmo quando rememoro, passando cada variável a limpo, buscando a adequação matemática dos eventos, não me consolo por completo. Uma melancolia argêntea fere o peito. Foi pior do que qualquer surra.

domingo, 8 de março de 2020

Rasgar o braço

Quando eu estava preso naquela vida de levantar o braço para diminuir a angústia dela, muitas vezes aguentava com bravura, resistência estoica. Então, na medida que vastos minutos iam se passando, os meus recursos de resiliência iam se esgotando. 

Naquele dia, o sofrimento durara pouco, no outro um pouco mais, já no outro durara para além do suportável. Nesses dias, então, com noites acumuladas, com preces sem respostas, com passes magnéticos inefetivos, o meu corpo pedia repouso, mas o meu descanso significava a angústia dela. Parava e me levantava. A raiva contra a doença dela me subia à cabeça. 

- Isso não está certo. Vamos tomar mais uma dose. 
- Não. Eu passo mal. 
- Isso não pode ser. 
- Levante meu braço. 
- Não aguento mais. 

Ela tremia calada. Seu rosto ia enrugando de aflição. Era o mesmo rosto que amei por toda a vida, sem querer que qualquer mal lhe acontecesse. Ainda mais depois da morte de papai. Quando cheguei do enterro do velho, de vez em quando, tomado de precauções quanto a finitude da vida, ia até mamãe dormindo para saber se ela respirava. Assumi seus cuidados sem divisar o que enfrentaria. Os piores monstros: o esgotamento do cérebro e a dúvida da alma. 

- Tem que ter algo que se possa fazer. 

Levantava seu braço agora o esticando. Alongava e massageava cada músculo, do ombro ao dedo. Os tremores não passavam. O remédio não fazia efeito. Mamãe começava a ficar com medo das minhas ações, porque perdia o jeito, perdia o tato, perdia o cuidado, passava para atitudes mecânicas, na busca de soluções mais práticas, mais assertivas. 

Você que está lendo não deve estar entendendo o que acontecia. Não se preocupe, nem os médicos sabiam. Ela tinha uma doença neurológica que a fazia perder o controle dos movimentos. Tem pessoas que tremem, ela enrijecia. Todavia, o enrijecimento era seguido de uma angústia de morte que a fazia implorar para que movimentassem o braço dela. Era como se ela não quisesse ficar presa naquela doença, e a alma dela implorasse libertação. Nessa época era apenas no braço esquerdo. E estou descrevendo uma dessas noites em que estávamos ali, três da madrugada, tentando sanar aquela rigidez. 

- Por favor, alongue meu braço. 
- Estou alongando. 

Mudava de posição. 

-  Assim não. 

Subia, então, no sofá para alongar por trás. 

- Não, assim não. 

Colocava-a de pé para a movimentar olhando-a frente a frente. 

- Não, não, não. 
- O que, então?!

Parava por completo, devolvia-a para o sofá. Afastava-me alguns metros. Olhava para aquele braço. Na minha mente aparecia a imagem de eu arrancando seu braço, com as próprias mãos, com as unhas, seus músculos inteiros, e depois os ossos. Depois, em vez de algum homem bom dentro de mim dizer que isso não se faz, outro monstro apenas replicava: não daria certo. Porque, então, todo o corpo dela paralisaria. Não era esse o caminho. 

Acho que ela percebia minha face de psicopata, ou perdida, e ficava bem quietinha. Quando tentava me aproximar, dizia:

- Deixe, não precisa mais. 

Ela ia suportando a rigidez calada, contida, rezando de algum modo. E eu olhando com vergonha, com impotência, com pecado. 

Ali vinha o clareamento dessa longa noite. O dia chegava contornando as nuvens cinzas. O remédio fizera efeito enfim. Na rua, uns notívagos indo tomar seus caldos. Alguns trabalhadores da primeira hora descendo de seus ônibus. 

- O que tenho para fazer hoje? Nem sei. O que tenho para fazer hoje? Nem sei. 

Dou um beijo no rosto dela e saio em silêncio.  

O telefone não toca

Estava acostumado a ter o telefone tocando com mamãe pedindo ajuda. Me pego às vezes pensando o que ela está precisando. Como se ela estivesse lá, sentada no sofá, assistindo à missa da tevê ou chorando de dor e agonia nos momentos de ausência de dopamina no cérebro. 

Esse sentimento de pensar nas necessidade dela vem desaparecendo pouco a pouco. Cada vez mais me dedicando à família e à profissão, vou me tocando que ela realmente se foi. 

O meu irmão passou a morar no apartamento dela enquanto não sai a herança. No começo eu ainda dizia: "vou pegar uma encomenda na casa da mãe". Hoje digo "na casa do meu irmão". Dá uma dor em trocar os donos e dá uma leveza. Saber que mamãe já não mais pertence fisicamente àquele reino em destruição me enche de esperança que, de alguma forma, ela está mais próxima da libertação. 

Hoje fui à missa com minha esposa. O padre pediu para que pensássemos em quem daríamos a paz de Cristo. Ele queria que pensássemos nos mais diversos pedintes, necessitados de toda ordem jogados pelo mundo. Só pensei nela, iluminada, esticando-se, como que despertando de um sono profundo, deitada que estava no escuro de uma solitária.

Chorei. 

Minha esposa ainda se admira de eu ter pensamentos confusos sobre aqueles quatro dias no hospital, de eu ter dúvidas sobre as decisões médicas tomadas ao final daquela vida. Mas, depois ela volta a entender. Pensa de como seria se tivesse sido a mãe dela. Para sua visão de quem não está no corpo de um filho, conseguindo ser mais objetiva, parece óbvio. Para mim, de vez em quando me pego perguntando se foi o certo. Aí tenho que fazer o esforço de repassar o diálogo que tive com mais de cinco médicos, todos de escol, todos unânimes de que o que aconteceu foi o mais certo técnica, ética e espiritualmente. 

E roda a melancolia seu interminável fuso. 

- Um dia esse tear para e, enfim, seu vestido estará pronto. Aquele de entrar na festa nupcial do Reino de Deus. Se é que já não entrou. Espero que tenha entrado. Entre, por favor.

Comecei uma terapia

Comecei uma terapia para tentar entender o que houve entre nós. Dia desses me lembrei o quanto te amei. Nunca conseguia ficar muito tempo com raiva. Tentava me comportar para merecer seus beijos. Era o conhecido bom menino. 

Dei muito orgulho em vários momentos. Prêmios que a senhora me entregou na mão. Tirei do seu rosto sorrisos. Beijei-lhe até mais não poder. E houve um tempo que realmente parecia não poder. 

Sua doença avançando, parecia que só tinha energia para ela. Seu rosto melado por um óleo, seu corpo enrijecido. Não mais sabia como cuidar de você. Eram três, e as vezes quatro, cuidadores se revezando para dar conta. Eu já não dava. E não dava por um motivo primeiro e o mais importante: eu não queria dar conta. 

A partir de um tempo eu queria ser apenas o seu filho e não mais um cuidador. Não mais alguém que estava ali para tentar sanar uma dor insanável ou para suprir as compras de casa. A terapeuta me orientou a recobrar o papel de filho que a morte de papai e a sua doença haviam me usurpado. Eu não era o seu homem nem o seu empregado, era o seu filho. Esse papel pedia então colo e atenção. Alguém poderia dizer que isso era mimo. Nem sei mais o que era aquilo. Aquela doença fazia os papéis todos se confundirem. Algum dia eu iria enterrá-la. Essa ordem dos fatos, possivelmente, não mudaria. Mas os papéis de mãe, filho, pai, cuidador, estava tudo uma bagunça. 

Em algum lugar da outra dimensão ainda sonho com você rígida. Minha nova terapeuta pediu para que eu não pensasse mais no que aconteceu naquela nossa existência de sofrimento e limitação. Que deixasse para reaver o diálogo quando te reencontrar. Não é fácil assim. Não é que eu precise resolver isso com você. É que preciso resolver aquilo que foi você em mim. A figura de afeto e companheirismo da primeira infância degenerada na prisioneira de uma vida miserável. Uma parte de mim queria cuidar de você até o último segundo, sem perder uma noite. Se assim tivesse sido, eu teria deixado de ser esposo, pai, médico. A outra parte, a que preponderou, tinha que desistir de você em larga medida. Deixar que outros tomassem de conta das suas necessidades. 

Ao final, eu era o pagador de contas, administrador de banco, e o supridor esporádico de mantimentos de supermercado. Esse afastamento me doeu. Tanto mais quanto menos se concretizou o retorno. Pensava que teria de novo a minha vez de abnegação filial. Deus parece que não quis esse desfecho: deixar você definhando em um leito só para devolver minha santidade. Preferível foi libertar-te das dores e esfregar a minha pequenez na cara. Eu, que passei a vida acreditando que nossa premiação celeste viria segundo as nossas obras, começo a depender, para minha sanidade, da misericórdia divina, da graça. Uma salvação que dependente só da Vontade Dele. E isso vem mexendo com muita coisa aqui dentro.